terça-feira, julho 12, 2011

O velho guitarrista cego, 1903, por Picasso...


Não desnudo a minha privacidade se partilhar com quem tem a bonomia e paciência de me ler, que descobri Picasso pela mão do meu primeiro quase amor, do primeiro encantamento adolescente, as partilhas nervosas de quem quer descobrir um mundo inteiro num único dia, num tempo em que as certezas ainda são absolutas e as verdades eternas enquanto duram! Mas confesso hoje, sem a vergonha que me fez escamotear no passado, por maior e esmagadora que seja a blasfémia, que Picasso nunca me encantou! Picasso para mim sempre foi aquela deslumbrante mulher, com curvas e contracurvas, com rosto lindo, com olhos divinos, aquela mulher que se lhe reconhecem todos os méritos e os mais desejados pecados, mas... não obstante ser tudo, sinto-a vazia com um nada! Porque, felizmente, na vida e nos amores, não há nada mais racional que o irracional, as certezas que temos sem que nada as comprove, apenas, porque sim! 

Mas se Picasso não me encanta, este seu velho guitarrista esmaga-me, sendo uma obra absolutamente excepcional, sem dúvida uma das pérolas do século XX! Apaixono-me pelas cores sombrios, pouco típicas no mestre, em meados da sua fase azul; encanto-me pela forma como o velho toca sobre si mesmo!
Por ignorância minha não consigo ver o mendigo que toca na rua para obter subsistência, nem tenho a inteligência erudita para ler no quadro a metáfora do artista num imenso conflito entre a sua arte e o comodismo burguês, a luta interior entre a pureza da arte e o mercantilismo das relações interpessoais! Sou uma mente orgulhosamente simples e vejo apenas um velho melancolicamente a tocar de si e para si, um homem que apesar de cansado de tocar para não ser ouvido não se derrota na amargura impotente e, até que os dedos lhe doam, não desiste de se entregar às suas paixões e tocar a sua música! Seja ouvido por uma multidão, quer as notas de música se percam em ruas desertas, ciente das suas certezas! 

9 comentários:

  1. Anónimo12:39

    que delicia! Deixou-me comovida!

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  2. Anónimo12:44

    Que belíssima surpresa um "Porque hoje é sábado" a um dia "normal" de semana...

    esta etiqueta é sempre arrebatadora, mas fiquei com curiosidade: o que é "um primeiro quase amor" ? É que o H usa com frequência o "quase" qdo se refere a relacionamentos...

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  3. Anónimo12:56

    " um homem que apesar de cansado de tocar para não ser ouvido não se derrota na amargura impotente e, até que os dedos lhe doam, não desiste " No intimo faz-me lembrar o H .
    Parabéns mais um texto fantástico

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  4. @anónimo - quem luta por aquilo que acredita, nunca perde! Pessoalmente... é-me irrelevante estar só ou ter atrás de mim um batalhão a acreditar no mesmo!

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  5. 12:44 - a pergunta é uma delicia, mas ficará sem resposta, porque, há aspectos da minha vida que não cabem num blogue! Ou... neste blogue!

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  6. Gostei muito de ler, como todas as etiquetas Porque Hoje é Sábado (estas referentes a pintura e ao teu despudor em partilhares o que vês nelas).

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  7. Anónimo14:46

    compreendo perfeitamente, e espero que seja apenas por enquanto..

    E, se me permite, ensaio eu o que o "quase" me sugere: usualmente o "quase" está associado a algo que não é totalmente; contudo, em mentes complexamente simples, poderá ser exactamente o oposto, mas regido por critérios diferentes dos comummente utilizados (ou pura e simplesmente não!?).

    Em seres perdidamente românticos, "um primeiro quase amor" faz-me lembrar a sabedoria popular "É o meu grande amor, enquanto outro não vem!", pq a vida, inesperadamente, brinda-nos com O Amor que ofusca todos os outros que julgavamos fenomenais, e que até o foram, mas que hoje ficam reduzidos a uma singela lembrança.

    pacientes já sei que somos, e seremos, então, bonómos e bonómas !?!?

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  8. Anónimo17:13

    Arrepiante...

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  9. Anónimo17:15

    O guitarrista:

    o que dizes sobre a verdade e as certezas: concordo plenamente. Se até a ciência tem demonstrado que as verdades apenas o são num determinado espaço e tempo, então.... no amor "as certezas sem que nada as comprove" é mesmo o princípio inabalável !!! o que não invalida que o amor tb viva de provas, e imagino que o amor mais belo é mesmo aquele em que o casal goza de uma cumplicidade e de um entendimento muitíssimo peculiares que só os dois conhecem, com provas reinventadas, com pequenos nadas que preenchem o vazio, com um vazio onde cabem sempre mais e mais pequenos nadas.

    não é a 1ª vez que trazes uma das "pérolas do séc. XX" ao VP; é sem dúvida uma figura impressionante que, num primeiro olhar, perturba pela sua decrepitude, tristeza e solidão, de alguém a quem só lhe resta a sua guitarra e a sua música. O que não é, de todo, de menosprezar, porque a música tem um poder fortíssimo e pode muito bem atear o rastilho de vida e, assim, este guitarrista não é triste nem abandonado mas um trovador resiliente que, ainda com enorme sofrimento e dôr, mantém-se num estado de hibernação até que a música possa ser apreciada por alguém que lhe devolve a vida e o faz rejuvenescer.

    sim, sou teimosamente romântica, gosto de imaginar que afinal trata-se do seguinte: o guitarrista foi tocado pelO Amor, sim, aquele Amor que minimiza todos os anteriores encantamentos e que, na momentânea impossibilidade de estar junto da sua amada (por isso está quase de rastos), mantêm-na próximo de si através da belíssima música que ela o inspira e que ele lhe dedica. Por isso é que o guitarrista sofre (e com toda a certeza a sua amada tb) porque fisicamente estão distantes...e por isso ele toca a sua música enquanto magica um modo de superar essa distância, que se torna torturante e incompreensível para duas pessoas que apenas se sentem vivas quando estão juntas, e que passam de blue a red numa fracção de segundo...

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Respeite as opiniões contrárias! Se todos tivéssemos o mesmo gosto, andávamos todos atrás da sua namorada! Ou numa noite de copos, a perseguir a sua mulher!