segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Tudo o que espoliámos à “geração sem remuneração”

por José Manuel Fernandes (Jornal Público - Sexta-feira, 4 de Fevereiro)

Quando o FMI chegou pela segunda vez a Portugal, em 1983, eu tinha 26 anos. Num daqueles dias de ambiente pesado, quando havia bandeiras pretas hasteadas nos portões das fábricas da periferia de Lisboa, quando nos admirávamos com ser possível continuar a viver e a trabalhar com meses e meses de salários em atraso, almocei com um incorrigível optimista no Martinho da Arcada. Nunca mais me esqueci de uma sua observação singela: “Já reparaste como, apesar de todos os actuais problemas, a nossa geração vive melhor do que as dos nossos pais? Tenta lembrar-te de como era quando eras miúdo…”
Era verdade: a minha geração viveu e vive muito melhor do que a dos seus pais. E eles já viveram melhor do que os pais deles. Mas quando olho para a geração dos meus filhos, e dos que são mais novos do que eles, sinto, sei, que já não vai ser assim. E não vai ser assim porque nós estragámos tudo – ou ajudámos a estragar tudo. Talvez aqueles que são um bocadinho mais velhos do que eu, os verdadeiros herdeiros da “geração de 60”, os que ocuparam o grosso dos lugares do poder nas últimas três décadas, tenham um bocado mais de responsabilidade. Mas ninguém duvide que o futuro que estamos a deixar aos mais novos é muito pouco apetecível. E que o seu presente já é, em muitos aspectos, insuportável.
Começámos por lhes chamar a “geração 500 euros”, pois eram licenciados e muitos não conseguiam empregos senão no limiar do salário mínimo. Agora é ainda pior. Quase um em cada quatro pura e simplesmente não encontram emprego (mais de 30 por cento se tiverem um curso superior). Dos que encontram, muitos estão em “call centers”, em caixas de supermercados, ao volante de táxis, até com uma esfregona e um balde nas mãos apesar de terem andado pela Universidade e terem um “canudo”. Pagam-lhes contra recibos verdes e, agora, o Estado ainda lhes vai aplicar uma taxa maior sobre esse muito pouco que recebem. Vão ficando por casa dos pais, adiando vidas, saltitando por aqui e por ali com medo de compromissos.
Há 30 anos, quando Rui Veloso fixou um estereótipo da minha geração em “A rapariguinha do Shopping”, a letra do Carlos Tê glosava a vaidade de gente humilde em ascensão social, fosse lá isso o que fosse: “Bem vestida e petulante/Desce pela escada rolante/Com uma revista de bordados/Com um olhar rutilante/E os sovacos perfumados/…/Nos lábios um bom batom/Sempre muito bem penteada/Cheia de rimel e crayon…”
Hoje, quando os Deolinda entusiasmam os Coliseus de Lisboa e do Porto, o registo não podia ser mais diferente: “Sou da geração sem remuneração/E não me incomoda esta condição/Que parva que eu sou/Porque isto está mal e vai continuar/Já é uma sorte eu poder estagiar…” Exacto: “Já é uma sorte eu poder estagiar”, ou mesmo trabalhar só pelo subsídio de refeição, ou tentar a bolsa para o pós-doc depois de ter tido bolsa para o doutoramento e para o mestrado e nenhuma hipótese de emprego. Sim, “Que mundo tão parvo/Onde para ser escravo é preciso estudar…”
É a geração espoliada. A geração que espoliámos.
Sem pieguices, sejamos honestos: na loucura revolucionária do pós-25 de Abril, primeiro, depois na euforia da adesão à CEE, por fim na corrida suicida ao consumo desencadeada pela adesão à moeda única e pelos juros baixos, desbaratámos numa geração o rendimento de duas gerações. Talvez mais. As nossas dívidas, a pública e a privada, já correspondem a três vezes o produto nacional – e não vamos ser nós a pagá-las, vamos deixá-las de herança.
Quisemos tudo: bons salários, sempre a subir, e segurança no emprego; casa própria e casa de férias; um automóvel para todos os membros da família; o telemóvel e o plasma; menos horas de trabalho e a reforma o mais cedo possível. Pensámos que tudo isso era possível e, quando nos avisaram que não era, fizemos como as lapas numa rocha batida pelas ondas: enquistámos nas posições que tínhamos alcançado. Começámos a falar de “direitos adquiridos”. Exigimos cada vez mais o impossível sem muita disposição para darmos qualquer contrapartida. Eram as “conquistas de Abril”.
Veja-se agora o país que deixamos aos mais novos. Se quiserem casa, têm de comprá-la, pois passaram-se décadas sem sermos capazes de ter uma lei das rendas decente: continuamos com os centros das cidades cheios de velhos e atiramos os mais novos para as periferias. Se quiserem emprego, mesmo quando são mais capazes, mesmo quando têm muito mais formação, ficam à porta porque há demasiada gente instalada em empregos que tomaram para a vida. Andaram pelas Universidades mas sabem que, nelas, os quadros estão praticamente fechados. Quando têm oportunidade num instituto de investigação, dão logo nas vistas, mas são poucas as oportunidades para tanta procura. Pensaram ser professores mas foram traídos pela dinâmica demográfica e pela diminuição do número de alunos. Sonharam com um carreira na advocacia, mas agora até a sua Ordem se lhes fecha. Que lhes sobra? As noites de sexta-feira e pensarem que amanhã é outro dia…
E observe-se como lhes roubámos as pensões a que, teoricamente, um dia teriam direito: a reforma Vieira da Silva manteve com poucas alterações o valor das reformas para os que estão quase a reformar-se ao mesmo tempo que estabelecia fórmulas de cálculo que darão aos jovens de hoje reformas que corresponderão, na melhor das hipóteses, a metade daquelas a que a geração mais velha ainda tem direito. Eles nem deram por isso. Afinal como poderia a “geração ‘casinha dos pais’” pensar hoje no que lhe acontecerá daqui a 30 ou 40 anos?
Esta geração nunca se revoltará, como a geração de 60, por estar “aborrecida”, ou “entediada”, com o progresso “burguês”. Esta geração também não se mobilizará porque… “talvez *****”. Mas esta geração, que foi perdendo as ilusões no Estado protector – ela sabe muito bem como está desprotegida no desemprego, por exemplo… –, habituou-se também a mudar, a testar, a arriscar e, sobretudo, a desconfiar dos “instalados”.
Esta geração talvez já tenha percebido que não terá uma vida melhor do que a dos seus pais, pelo menos na escala que eles tiveram relativamente aos seus avós. Por isso esta geração não segue discursos políticos gastos, nem se deixa encantar com retóricas repetitivas, nem acredita nos que há muito prometem o paraíso.
Por isso esta geração pode ser mobilizada para o gigantesco processo de mudança por que Portugal tem de passar – mais do que um processo de mudança, um processo de reinvenção. Portugal tem de deixar de ser uma sociedade fechada e espartilhada por interesses e capelinhas, tem de se abrir aos seus e, entre estes, aos que têm mais ambição, mais imaginação e mais vontade. E esses são os da geração “qualquer coisa” que só quer ser “alguma coisa”. Até porque parvoíce verdadeira é não mudar, e isso eles também já perceberam…

9 comentários:

  1. Anónimo00:19

    É um artigo Excelente. Já tinha lido. Para além das nossas divergências, vai parando um sentimento comum: é preciso reinventar Portugal. Agora...como operacionalizar? Como deixar as "capelinhas" em prol de uma sociedade mais justa, sustentável, cívica e civilizada? Às vezes sinto que a minha geração está stuck (presa e emperrada)e que, embora transbordante de sentido crítico, nada acontece!

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  2. Anónimo00:22

    só uma rectificação: eu ainda estava longe dos 26 em 1983!!!
    :)

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  3. Anónimo00:34

    Um artigo excelente ... temos que reinventar Portugal antes que tudo isto afunde ... porque quando olhamos para o lado dá para ver o estado a que tudo isto chegou ... na verdade, com o 25 de Abril passámos de 8 a 80 e aí é que esteve o mal!! Foi tudo a "comer" sem olhar a meios, ou já se esqueceram que os políticos da época foram os primeiros responsáveis? Os que vieram a seguir só tiveram o trabalho de manter os vícios, suportados por ideias erradas e anarquistas de "liberdade" ...

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  4. Anónimo04:48

    Só falta acrescentar que "esta geração" foi a que elegeu Sócrates, por duas vezes, porque era modernaço e vestia bem.

    Que não se importou com as inúmeras falcatruas do homenzinho. Até as aplaudiu por ser um português daqueles espertos e que se soube safar, tomara eles.

    Afinal ainda os enterrou mais? Αzar! Agora não se venham queixar. Votem nele uma vez mais.

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  5. Gostosa09:31

    H a que horas vais á festa dos encalhados?

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  6. Anónimo17:27

    à festa, sff

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  7. Varredora09:23

    Dica para a Raquel:
    Querida: Os homens no seu dia a dia gostam de acompanhar com mulheres com um nível cultural alto. Mas quando estão na cama! não querem saber se escreve "compras-te" ou compraste!!
    Preferem outro tipo de escrita!!
    Bom dia!! para ti!!!

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  8. Anónimo11:38

    Meninas não andem a estalada o homem chega para todas, sim uma mulher para ser boa na cama não precisa de cultura mas para companhia de sofá faz falta alguém que atinja o nível !

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  9. Arre, até estou com medo de assinar que me chamo Raquel... (e aqui para nós ele é mesmo um borracho)

    Mas vim aqui para dizer que o início da crónica me fez quase chorar porque vi o meu presente ali escarrapachado... e tenho 42.

    Há dezassete anos ganhava a recibos verdes - como publicitária o mundo não era perfeito e mesmo assim os impostos sobre estes não eram o que é agora - cerca de 120 contos (600 euros) com direito a almoço pago todos os dias, e subsídio de férias e de Natal. E na época para um publicitário nem sequer me considerava bem paga.
    A partir daí foi sempre a ganhar mais.

    Hoje, já me "sujeitei" a cursos para receber algum valor ridículo; se quiser ganhar sequer 500 euros não pode ser na minha área e olho para trás e acho que devia estar insana por achar que ganhava pouco num primeiro emprego.
    E acredito que vou terminar num Minipreço... (antes a fazer várias tarefas ali que num telefone a vender cartões de crédito que não tenho jeito para tal).

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Respeite as opiniões contrárias! Se todos tivéssemos o mesmo gosto, andávamos todos atrás da sua namorada! Ou numa noite de copos, a perseguir a sua mulher!