Francisco foi roubado ao sono justo, pelo barulho estridente de um despertador sodomizado, que com inveja mesquinha, abalroou-o a um qualquer sonho evasivo que lhe havia desenhado um sorriso no rosto, bem como outros sintomas que o pudor deste escriba subtrai ao relato, convidando o leitor a imaginar os sintomas que fogem destas linhas. Deixou-se ficar na cama a fumar um cigarro, vicio cruel e medonho, que fazia questão de cultivar desde os primeiros minutos da manhã.
Conduzindo pelo instinto, porquanto apenas o primeiro de dois cafés o despertam, tomou um duche sonâmbulo, aparou a barba de três dias, obviamente o gel no cabelo onde os primeiros cabelos brancos lhe desenhavam um charme grisalho e vestiu-se. Dispensando o fato e a gravata, um rito inusual, que se consubstanciava em usa-lo sempre, apenas o dispensando quando o mesmo era obrigatório, numa pretensa rebeldia estéril, inconsequente e infantil. Mas religiosamente cultivada. Como sublinhou o seu mais intimo psicológico, alguns anos depois, mais que o prazer de provocar, Francisco cultivou sempre uma fobia ás relações mundanas, que a rebeldia era o seu silencioso protesto.
Nessa manhã, em que o Ministro visitava a cidade, o nosso herói trajou umas calças de ganga Salsa, com pequenos rasgões espalhados [curiosamente iguais às que um qualquer pêgo me roubou], sob uma camisa branca, um blazer azul bem escuro, obviamente HugoBoss e um lenço cor de rosa, que imitava um cachecol! Uns cereais com iogurte apressadamente deglutidos e ei-lo a caminho do seu destino, que o esperava sem pressas!
E foi por isso que conduziu devagar, apesar de ter pressa! Estacionou o carro, no local de todos os dias, nos últimos 18 meses e meio e foi surpreendido por uma pedinte, cerca de 17 anos, que incomodada balbuciava monossílabos imperceptíveis, numa qualquer língua que não a de Camões. Francisco, recusou estender a carteira e seguiu insensível às suplicas mudas, compenetrado, carregando consigo uma comiserada piedade pela triste sina daquela jovem, constrangida a uma miséria de pedir! Sensível como Francisco é, um jovem adulto terno, consciencioso, solidário, não conseguiu evitar um lamento, a indignação de sentir que esta jovem muito carenciada era obrigada a pedir nas ruas, quando muitas outras jovens, com muito menos carências, tinham o privilégio de se prostituir para alcançarem o sustento.
A Praça Principal estava engalanada para receber a efeméride: juntamente com o Ministro arribavam à pacata cidade, bandos de energúmenos alapados a um qualquer poder politico, cambada de imprestáveis que vivem de sugar dinheiros públicos, numa inércia obscena, pavões sem penas, com muitos euros. Também as forças vivas da cidade compareceram em força, embora de “força” e “viva” eram apenas epitáfios que há muito perderam o sentido. Francisco evitou a multidão, esgueirou-se por uma porta tímida, entrou no novíssimo edifício, furtou da máquina um café que ele pagou e sentou-se no gabinete do Ministério Publico, cujo seu nome ornamentava a porta. Acendeu um cigarro, ciente que era proibido, mas lixando-se para a interdição; ou não fosse aquele o seu reino!
Por capricho, ignorou as recomendações e marcou para o dia da inauguração do tribunal um conjunto de diligências supérfluas, para ter o desprazer de ter o prazer de assistir à efeméride terceiro mundista, de inaugurar com goma e circunstancia uma obrazeca construída demasiados anos depois do necessário, derrubando todos os prazos, depois de violar um orçamento, como é costume em qualquer grande ou pequena obra pública.
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