Repeti isto três ou quatro vezes, sempre em fins de tarde, quando o sol ameaça despedir-se e conceder à misteriosa lua o privilégio de iluminar com penumbra as nossas vidas. Acendo um cigarro, dou uma única passa, apago-o meticulosamente e deixo-o repousado, visível no pequeno murinho que anuncia a porta de entrada da Escola onde exerço há mais de oito anos a minha actividade profissional. Desnudo nesta crónica o meu terrível vício, contando ao leitor a história deste que deposita no muro um cigarro quase intacto, quando ao longe vê aproximar-se um septuagenário, que desde há uns meses, todos os fins de tarde, se dedica a apanhar do chão as beatas carcomidas pelos lábios de outrem.
Vi esta cena repetir-se diversas vezes, como se uma única não fossem vezes de mais. Sem nunca me tenha pedido um cigarro! Sem nunca que a minha tímida cobardia me guiasse a oferecer-lhe do meu maço um imaculado cigarro!
Apelei para a memória, mas não me recordei da última vez que tinha visto alguém apanhar beatas do chão para poder fumar! E admito que se possa dizer que é espúrio dedicar uma crónica a este mal fadado vicio! Mas, pobreza também é a tristeza de um ancião trabalhar toda a sua vida com afinco e não ter dinheiro para, na velhice, dedicar-se ao seu único vicio! Mas recusar-se a pedir: preferir apanhar as beatas que jazem no chão, a depender da beata misericórdia alheia!
Nos últimos vinte anos Portugal cresceu muito enquanto País; a divergência ideológica pode-nos fazer duvidar da direcção assumida, a divergências partidárias fazem-nos discutir se tinha sido possível crescer mais ainda, mas a análise desapaixonada e racional dos factos, tornam evidente que o nível de vida dos portugueses cresceu exponencialmente nas ultimas décadas! Mesmo quando a palavra crise reentrou no léxico nacional, vivíamos uma crise na riqueza, onde nas ferias se esgotavam as viagens para o estrangeiro, os hotéis enchiam, com mais ou menos dificuldade as casas continuavam a vender-se, um parque automóvel similar ao melhor da Europa, um País onde muitos tem acesso às novas tecnologias, onde todos têm telemóvel e que o endividamento das famílias resultava, sobretudo, de um uso desregrado dos créditos ao consumo! Com criticas e duvidas, com extrema necessidade de ajustamentos, o Portugal dos anos noventa era um Estado Social, onde todo o cidadão tinha acesso à educação, era-lhe garantido o acesso ao Direito, praticamente ninguém vivia em barracas, os desempregados recebiam apoios do Estado, o rendimento mínimo garantido auxiliava os que mais precisam (infelizmente, também muitos que não precisavam) e, com falhas e insuficiências, o sistema nacional de saúde respondia às necessidades de um povo!
E todos acreditámos que o crescimento económico era uma realidade irreversível! E repetimos todos os erros seculares, que sempre fizemos nos períodos de relativa fertilidade económica: tal como na época dos descobrimentos, também esbanjámos sem pudor, lógica ou sentido muito do dinheiro de Bruxelas!
A crise de que hoje se fala, já não rima com diminuição da qualidade de vida, com algumas restrições consumistas, com um doseamento dos gastos ditos supérfluos, mas conjuga-se com fome! E nem é preciso gastar linhas para falar na subida do preço dos alimentos, da crise americana, das más politicas agrícolas, dos novos hábitos alimentares na Ásia ou quaisquer outras dos pretextos politicamente inteligentes que fazem jargão nos telejornais! Pela primeira vez em muitos anos, milhares de portugueses deixaram de conseguir ter acesso ao mais básico da subsistência, dormindo com o estômago vazio, dependentes do altruísmo de entidades privadas que distribuem largos milhares de refeições por dia; não em Africa, mas em Lisboa, Porto, Beja…
Oiço algumas vezes que o dinheiro não é importante; uma frase batida, daqueles que tem o suficiente para viver com o luxo de não pensarem nele! Eu próprio, amiúde repito que nunca fiz as minhas escolhas imbuído por preocupações financeiras, escolhendo o mais rentável dos caminhos possíveis: mas o facto de ganhar o bastante para os pequenos vícios, não devia permitir a arrogância de não pensar nos outros, naqueles, cada vez mais, que mesmo trabalhando com afinco e honestidade, não tem o suficiente para se alimentar a si e aos seus! Poderá o leitor atacar-me por iniciar esta crónica a falar do senhor que fuma as beatas no chão; mas o meu medo, o que me entristece é o receio de daqui a breves semanas, cruzar-me com ele do outro lado da rua, procurando nos despojos do lixo alimento, porque mesmo com uma septuagenária vida de trabalho e sofrimento, não tem o consolo de matar a sua fome e os inofensivos vícios que nos permitem uma ilusão de felicidade!
"O que nunca ninguém diz, porventura com medo de parecer vaidoso, é que a inteligência tem um preço: a solidão" (Nuno Lobo Antunes)
segunda-feira, maio 19, 2008
O velho e o cigarro...
(Crónica CorreioAlentejo)
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Gostei de te ler nesse jornal! Parabéns por mais esta bela crónica!
ResponderEliminarBem verdade ...
ResponderEliminarO meu medo , é isto não parar a tempo .
Pelos nossos filhos , nossos avós , nossos Pais , por todos .
gostava de saber quem tirou essa fotografia, muito bom.
ResponderEliminar@inergume - Sim, a foto é estupenda! Roubei na net e está espalhada em vários blogues! Desconheço a autoria!
ResponderEliminarEsses mesmos fantasmas assombram-me diariamente. O choro invade-me frequentemente quando assisto a esse tipo de situções. Porque penso sempre desta forma: " E se fosse eu?", ou um amigo meu? Ou um familiar meu? Recordo-me de um dia de inverno muito frio e muito chuvoso. Um dia terrivelmente triste, deprimente...
ResponderEliminarSaí do escritório e encontrei na rua um rapaz, que em tempos foi meu colega de escola - super inteligente, dotado... Quase despido, descalço, gelado. Estava ali, no meio da rua, na chuva, a pedir dinheiro. Fui atraída para ele e fiquei com ele a conversar durante um bom tempo. Ao frio e á chuva. Vi que a degradação dele era muito mais que física, era total - sem rumo, sem passado e eu vi que... sem futuro.
A história é muito mais longa, mas o fim é curto - ele foi encontrado morto passados poucos dias.
Nunca, mesmo durante o ano em que estudámos, fomos próximos, mas o sofrimento dele aproximou-nos, ainda que por um breve período - demasiado breve...
Á distância, sei hoje, que o que tanto me entristeceu nele, foi a possibilidade de me rever nele, ou rever alguém muito próximo...
Apavora-me a degradação humana...
E ás vezes basta só um sorriso...